sábado, 22 de maio de 2010

Uma gambiarra (no sentido literal)

Em uma vila no Malauí, garoto transforma a vida de todos usando sucata e livros amarelados de física elementar.
por Rafael Cabral

William Kamkwamba, 22 anos, estudante.

Sucata, uma bicicleta enferrujada, dois livros amarelados de física elementar, peças de um motor achadas em um ferro velho e, acima de tudo, muito esforço e criatividade. Foi com esse material que fez com que a vida de William Kamkwamba, que passava fome na parte rural do Malauí, virasse do avesso.
Aos 14 anos, o menino largara a escola – sem dinheiro para os US$ 80 anuais exigidos por aluno – e era forçado a cavar o chão em busca de raízes ou cascas de banana, os únicos alimentos possíveis em meio à seca que matava de inanição os habitantes de seu vilarejo, Wimbe. Falido, faminto e sem perspectivas, decidiu parar de imaginar que as coisas se resolveriam com um milagre: era melhor se virar com que tinha, e bem rápido.
Em abundância, havia sol, vento e sucata. "E se eu tentasse fazer algo com isso?", pensava, folheando os livros de ciência de uma minúscula biblioteca improvisada pelo governo norte-americano. Mesmo sem saber inglês, a língua em que as obras eram escritas, fascinava-se com a imagens que mostravam geradores de energia, inexistentes na sua vila e em grande parte do Malauí, o 138º país do mundo em geração e consumo de eletricidade. Por lá, isso é luxo de 2% da população.
Mas foi só quando topou com a capa do livro didático Using Energy, estampando um moinho de vento, que uma lâmpada acendeu em sua cabeça. "Com aquilo, tudo melhoraria. Poderíamos bombear água, aumentar nossas colheitas. Acabaria com a nossa fome", relembra, em entrevista ao Link. "Foi aí que decidi fazer um daqueles".
Seus familiares, vendo o moleque passando daqui pra lá com entulho e toras de madeira, pensaram que ele estava maluco. A certeza viria algumas semanas depois, quando ele derrubou algumas árvores de eucalipto e ergueu uma torre de mais de cinco metros de altura.
Sem incentivo, instrução e "nem noção do que era a internet", William confiava na intuição e nas noções básicas de física que recebeu no colégio. Mas até ele se assustou quando a pás se mexeram e, ao juntar dois fios a uma lâmpada, fez-se a luz.
Trivial para a maioria de nós, a literal gambiarra ("Extensão elétrica com uma lâmpada na ponta, que permite o uso da luz em diferentes localizações", segundo o Houaiss) mudou radicalmente a vida da vila, hoje movida por energia eólica, e ainda mais a de seu idealizador.
Aos 22 anos, Kamkwamba já palestrou no Fórum Social Mundial e no TED, o evento de tecnologia que recebe convidados como Bill Gates e Stephen Hawking. E, diga-se de passagem, foi aplaudido de pé por lá.
Sua história de superação virou até biografia, escrita em parceria com o jornalista Bryan Mealer. The Boy Who Harnessed the Wind (O Garoto que Domou o Vento, ainda inédito por aqui) ficou mais de um mês na lista de mais vendidos do New York Times e foi eleito um dos dez melhores de 2009 pela Amazon. Um documentário sobre ele já está agendado para 2011.
Hoje cursando o último ano da African Leadership Academy, na África do Sul, destinada a formar futuros líderes do continente, ele logo deve se mandar para os EUA. Lá seguirá na universidade e tentará angariar apoio para o seu projeto Moving Windmills, que ajuda vilarejos como o seu a se sustentarem apenas com meios renováveis. Veja só onde aquela gambiarra foi dar...
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Organização quer espalhar moinhos por outros países.

Movido por um dínamo de bicicleta motorizada (área que estoca energia das pedaladas), o primeiro gerador eólico construído por William gerava apenas 12 volts, o suficiente para acender uma lâmpada. Com o reforço de uma bateria de carro, achada no meio da estrada, já carregava quatro lâmpadas e dois rádios.
Com a população começando a acreditar no projeto do garoto e ajudando a levantar mais dessas engenhocas, Wimbe hoje está apinhada de moinhos – que não significam apenas eletricidade, mas liberdade e autossuficiência. É uma "solução africana para problemas africanos", como descreve a ONG Moving Windmills, que surgiu inspirada na ideia.
Em vez de confiar em doações de organizações humanitárias, que dificilmente chegam onde deveriam, o projeto usa a internet para emancipar pequenos vilarejos carentes. Pelo site MovingWindmills.org, dá para doar pequenas quantias para projetos localizados, como um moinho para uma escola no Malauí ou um sistema de irrigação de uma colheita. Fundada em 2008, a organização quer espalhar moinhos de vento pela África, principalmente nas áreas rurais, abandonadas pelos governos. A energia eólica representa, hoje, apenas 1,5% do consumo global, mas é ideal para o continente: usa materiais baratos e recursos abundantes.

Para o continente africano, celulares são os novos PCs.

Quando William Kamkwamba disponibilizou energia elétrica para sua vila, tomou um susto. As filas formadas em sua porta não eram de pessoas querendo usar geladeira ou TV. "Todos eles queriam recarregar seus celulares", lembra.
O episódio mostra a importância que os aparelhos têm na África. Enquanto a internet chega para apenas 6,7% das pessoas do continente e a energia elétrica ilumina 25% dos africanos, 37% deles possuem celular. Isso mesmo: são mais pessoas com o dispositivo no bolso do que com eletricidade em casa.
O celular é o PC da África e, junto do rádio, é a principal fonte de informação dos africanos. Mas internet 3G por lá ainda é um conceito distante. As informações circulam por SMS. E em locais a que as ondas de rádio não chegam, as mensagens de texto acabam sendo a única opção. A rádio SW Africa, que fica em Londres, manda 30 mil mensagens de texto por dia para cidadãos do Zimbábue, país que bloqueia sinais de rádio.
Em uma sociedade carente de quase todos os serviços mais básicos, opções baseadas no celular começam a surgir como alternativa. No Quênia, um serviço iniciado em 2007 permite que oito milhões de pessoas usem seus créditos de celular para pagar táxis e bares.

E A INTERNET?

Com a eletricidade chegando a apenas um quarto da África, imaginar uma popularização da internet parece exagero. Só que algumas iniciativas começam a abrir caminho.
O East African Submarine System é um projeto bancado pelo Banco Mundial e que irá esticar uma cabo de fibra óptica pelo continente para disponibilizar internet de alta velocidade em 20 países. Só que um problema prático vai persistir: qual a parcela da população que terá dinheiro para comprar um computador para acessar a rede?
Kamkwamba ainda deve ver por muito tempo as pessoas andando para lá e para cá com carregadores. E ele sabe o motivo: "Esses aparelhos estão em todos os cantos porque são baratos". (R.C. e FERNANDO MARTINES)

ONDE?

- O PAÍS – Enfiado entre Zâmbia, Tanzânia e Moçambique, o Malauí tem 15 milhões de habitantes. 85% deles vivem na área rural, a grande maioria sem energia elétrica e outros serviços básicos.
- ECONOMIA – Um dos mais pobres do mundo e, ao mesmo tempo, um dos mais populosos, o país sobrevive quase que exclusivamente da sua agricultura. Tabaco, algodão e cana de açúcar representam 90% das exportações.
- POBREZA – Em 2005, o Malauí recebeu US$ 575 milhões de ajuda humanitária, mas mesmo assim foi considerado o país mais pobre do mundo pelo FMI. Sofre também com uma enorme taxa de HIV.

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